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100 anos da “Oração aos Moços”

Reflexão sobre papel do magistrado e missão do advogado.

 

    Era 29 março de 1921. Na sessão solene dos formandos de 1920 da Faculdade de Direito de São Paulo, tudo estava pronto para a cerimônia. O paraninfo – nada mais, nada menos do que Rui Barbosa – não compareceu por estar adoentado, mas deixou aos formandos um legado que se tornaria literalmente uma oração. A “Oração aos Moços”, lida nesse dia pelo catedrático de Direito Romano, Reynaldo Porchat, assinalava, nas palavras do interlocutor, os 50 anos de consagração ao Direito de Rui Barbosa que, ali, havia se formado em 1870.

    Hoje, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), criada em 11 de agosto de 1827, também conhecida por Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, ou "Arcadas" em alusão à sua arquitetura, e a Faculdade de Direito do Recife (de onde veio transferido Rui Barbosa para o término de seu curso em São Paulo) são as mais antigas faculdades de Direito do país.

    Quando convidado para o posto de paraninfo da turma de 1920, Rui Barbosa era senador pela Bahia. Os novatos quiseram homenagear o ex-aluno, que completava 50 anos de formado. Daí veio a “Oração aos Moços”, discurso a ser proferido na solenidade e que se tornou um clássico no mundo jurídico. Cem anos depois, ainda se vê alusões ao texto em sentenças, petições e/ou sustentações orais. A obra de Rui Barbosa, uma das mais célebres reflexões da cultura jurídica brasileira, ainda nos dias de hoje traz semelhanças com a realidade. É atual, dinâmica, retrata o pensamento político e jurídico, expressa a vida social, a ação governamental e a crença em Deus. “Enquanto houver ideal liberal democrata nas escolas de Direito e nos bancos parlamentares, haverá lugar para a “Oração aos Moços”, esse clássico do pensamento político e jurídico brasileiro”, escreveu Christian Edward Cyril Lynch, em “Um clássico do bacharelismo liberal”.

    Nada mais atual do que uma das mais citadas frases de Rui Barbosa: “Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Não por acaso, tanto os tribunais brasileiros como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) buscam em seus planejamentos estratégicos meios e condições de tornar a Justiça cada vez mais célere e eficaz. A informatização tem contribuído para não retardar a distribuição de Justiça.

    “É claro que não caberia aqui, neste pequeno espaço, o lugar mais adequado para avaliar os méritos da conhecida oração, em que Rui, numa série de conceitos e afirmações, recorda as lições de sua experiência, como jurista e homem público, num tom paternal ou de companheiro mais velho, aos formandos que aspiram à carreira de advogado ou à magistratura.” (Trecho do artigo do então juiz Emeric Lévay, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 29/3/91, por ocasião do 70º aniversário do discurso de Rui, escrito aos bacharelandos de 1920).

    Assim começa a “Oração aos Moços”: “Senhores: Não quis Deus que os meus cinquenta anos de consagração ao Direito viessem receber no templo do seu ensino em São Paulo o selo de uma grande bênção, associando−se hoje com a vossa admissão ao nosso sacerdócio, na solenidade imponente dos votos, em que o ides esposar. Em verdade vos digo, jovens amigos meus, que o coincidir desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora, o seu coincidir num ponto de intersecção tão magnificamente celebrado, era mais do que eu mereceria; e, negando−me a divina bondade um momento de tamanha ventura, não me negou senão o a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar. Mas, recusando−me o privilégio de um dia tão grande, ainda me consentiu o encanto de vos falar, de conversar convosco, presente entre vós em espírito; o que é, também, estar presente em verdade.”

    Assim termina a “Oração aos Moços”: “Eia, senhores! Mocidade viril! Inteligência brasileira! Nobre nação explorada! Brasil de ontem e amanhã! Dai−nos o de hoje, que nos falta. Mãos à obra da reivindicação de nossa perdida autonomia; mãos à obra da nossa reconstituição interior; mãos à obra de reconciliarmos a vida nacional com as instituições nacionais; mãos à obra de substituir pela verdade o simulacro político da nossa existência entre as nações. Trabalhai por essa que há de ser a salvação nossa. Mas não buscando salvadores. Ainda vos podereis salvar a vós mesmos. Não é sonho, meus amigos: bem sinto eu, nas pulsações do sangue, essa ressurreição ansiada. Oxalá não se me fechem os olhos, antes de lhe ver os primeiros indícios no horizonte. Assim o queira Deus.”

 

    Veja outros trechos:

    “Para o coração, pois, não há passado, nem futuro, nem ausência. Ausência, pretérito e porvir, tudo lhe é atualidade, tudo presença. Mas presença animada e vivente, palpitante e criadora, neste regaço interior, onde os mortos renascem, prenascem os vindoiros, e os distanciados se ajuntam, ao influxo de um talismã, pelo qual, nesse mágico microcosmo de maravilhas, encerrado na breve arca de um peito humano, cabe, em evocações de cada instante, a humanidade toda e a mesma eternidade.”

    “Se não há, pois, abismo entre duas épocas, nem mesmo a voragem final desta à outra vida, que não transponha a mútua atração de duas almas, não pode haver, na mesquinha superfície do globo terrestre, espaços, que não vença, com os instantâneos de presteza das vibrações luminosas, esse fluido incomparável, por onde se realiza, na esfera das comunicações morais, a maravilha da fotografia à distância no mundo positivo da indústria moderna.”

    “Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o que me estava ao alcance: a desambição, a pureza, a sinceridade, os excessos de atividade incansável, com que, desde os bancos acadêmicos, o servi, e o tenho servido até hoje.”

    “Nem toda ira, pois, é maldade; porque a ira, se, as mais das vezes, rebenta agressiva e daninha, muitas outras, oportuna e necessária, constitui o específico da cura. Ora deriva da tentação infernal, ora de inspiração religiosa. Comumente se acende em sentimentos desumanos e paixões cruéis; mas não raro flameja do amor santo e da verdadeira caridade. Quando um braveja contra o bem, que não entende, ou que o contraria, é ódio iroso, ou ira odienta. Quando verbera o escândalo, a brutalidade, ou o orgulho, não é agrestia rude, mas exaltação virtuosa; não é soberba, que explode, mas indignação que ilumina; não é raiva desaçaimada, mas correção fraterna.”

    “Não poucas vezes, pois, razão é lastimar o zelo dos amigos, e agradecer a malevolência dos opositores. Estes nos salvam, quando desagrestes, aqueles nos extraviam. De sorte que, no perdoar aos inimigos, muita vez não vai somente caridade cristã, senão também justiça ordinária e reconhecimento humano. E, ainda quando, aos olhos do mundo, como aos do nosso juízo descaminhado, tenham logrado a nossa desgraça, bem pode ser que, aos olhos da filosofia, aos da crença e aos da verdade suprema, não nos hajam contribuído senão para a felicidade. Este, senhores, será um saber vulgar, um saber rasteiro, ‘um saber só d’experiências feito’.”

    “O amanhecer do trabalho há de antecipar−se ao amanhecer do dia. Não vos fieis muito de quem esperta já sol nascente, ou sol nado. Curtos se fizeram os dias, para que nós os dobrássemos, madrugando. Experimentai, e vereis quanto vai do deitar tarde ao acordar cedo. Sobre a noite o cérebro pende ao sono. Antemanhã, tende a despertar.”

    “Mas, senhores, os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas.”

    “Idealismo? Não: experiência da vida. Não há forças, que mais a senhoreiem, do que essas. Experimentai−o, como eu o tenho experimentado. Poderá ser que resigneis certas situações, como eu as tenho resignado. Mas meramente para variar de posto, e, em vos sentindo incapazes de uns, buscar outros, onde vos venha ao encontro o dever, que a Providência vos haja reservado.”

    “Todo pai é conselheiro natural. Todos os pais aconselham, se bem que nem todos possam jurar pelo valor dos seus conselhos. Os meus serão os a que me julgo obrigado, na situação em que momentaneamente estou, pelo vosso arbítrio, de pai espiritual dos meus afilhados em Letras, nesta solenidade. É à magistratura que vos ides votar? Elegeis, então, a mais eminente das profissões, a que um homem se pode entregar neste mundo. Essa elevação me impressiona seriamente; de modo que não sei se a comoção me não atalhará o juízo, ou tolherá o discurso. Mas não se dirá que, em boa vontade, fiquei aquém dos meus deveres.”

    “Magistrados futuros, não vos deixeis contagiar de contágio tão maligno. Não negueis jamais ao Erário, à Administração, à União os seus direitos. São tão invioláveis, como quaisquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais alto dos poderes.”

    “Preservai, juízes de amanhã, preservai vossas almas juvenis desses baixos e abomináveis sofismas. A ninguém importa mais do que à magistratura fugir do medo, esquivar humilhações, e não conhecer cobardia. Todo o bom magistrado tem muito de heróico em si mesmo, na pureza imaculada e na plácida rigidez, que a nada se dobre, e de nada se tema, senão da outra justiça, assente, cá embaixo, na consciência das nações, e culminante, lá em cima, no juízo divino. Não tergiverseis com as vossas responsabilidades, por mais atribulações que vos imponham, e mais perigos a que vos exponham. Nem receieis soberanias da terra: nem a do povo, nem a do poder. O povo é uma torrente, que rara vez se não deixa conter pelas ações magnânimas. A intrepidez do juiz, como a bravura do soldado, o arrebatam e fascinam.”

 

    Leia a “Oração aos Moços” na íntegra

 

    *A grafia original foi preservada

 

    N.R.: texto originalmente publicado no DJE de 24/3/21.

 

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