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Doutrina

Comunicado

A assistência judiciária e a assistência jurídica: uma confusão a ser solvida - Desembargador Rizzatto Nunes

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo; Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela PUC/SP; Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC/SP; Coordenador e Professor dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito da Unimes/Santos; Acadêmico da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito.

O presente artigo pretende solver a confusão que tem sido feita nos meios forenses relativamente a dois institutos fundamentais de exercício da cidadania e de salvaguarda do acesso à Justiça, a saber o direito de assistência judiciária gratuita assegurado na Lei 1060/50 e o direito de assistência jurídica integral e gratuita assegurado na Carta Magna (art. 5º, LXXIV). Vejamos.

1. A assistência judiciária

Um dos grandes entraves para o exercício da cidadania é – sempre foi – o de ordem financeira, capaz de por si só impedir a pessoa de bater às portas do Judiciário para apresentar seu pleito. No Brasil, fruto de uma sustentação democrática bastante ampla, já nos idos de l950 foi editada a Lei 1060 visando acabar com essa ordem de impedimento.
Pois bem. Anote-se um dado desde logo: um dos pontos fortes da Lei 1060/50 está na garantia do direito de isenção que pode a parte requerer, consistente em não arcar com as taxas, custas e despesas processuais, vale dizer, a lei cuida de isentar do pagamento do custo do processo a pessoa que necessite. E o que ela exige para o exercício dessa prerrogativa? Apenas e tão somente a simples afirmação em juízo de que a parte não tem condições de arcar com esse custo sem prejuízo de seu próprio sustento e/ou de sua família. Nada mais.

O artigo 4º da Lei de Assistência Judiciária, como é conhecida a lei 1060/50, é expresso nesse sentido ao dispor que:
“A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”.
O legislador fez exigência bastante singela: basta a mera afirmação na própria peça processual (a norma fala em petição inicial, mas a interpretação extensiva consensual e pacífica oferecida pela doutrina e jurisprudência deixam patente que o pleito pode ser feito na contestação, nos embargos etc). O texto legal é de clareza solar, exigindo uma mera interpretação gramatical. Aliás, a questão é induvidosa, inclusive, no E. STJ:
“Processual - Pedido de Assistência Judiciária gratuita - Requisito - Prazo - É suficiente a simples afirmação do estado de pobreza para a obtenção do benefício da justiça gratuita - Recurso provido”
E isso porque a garantia que está em jogo é a do acesso à Justiça e não a do direito do Estado arrecadar taxas. Mas, para aquele que duvide que a pessoa que vai ao Judiciário sem pagar taxas e com isso lesa o erário público, o §1º do referido art. 4º resolve a pendência:
“Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais”

2. A questão da prova da insuficiência de
recursos
Agora pergunta-se: a parte não tem que provar a insuficiência de recursos? Esse é um dos temas que ainda gera decisões díspares. E isso porque é difícil ao magistrado admitir que alguma afirmação possa ser feita em Juízo sem a devida apresentação de prova correspondente. Acontece que, na hipótese, o legislador presume a prova da afirmação. Não significa dizer que a parte não tem que provar, mas que existe uma presunção legal de que ela está falando a verdade. Essa presunção é “juris tantum”, podendo a parte contrária impugnar a concessão para desmontá-la, conforme estabelecido no “caput” do art. 7º da Lei:
“A parte contrária poderá, em qualquer fase da lide, requerer a revogação dos benefícios de assistência, desde que prove a inexistência ou o desaparecimento dos requisitos essenciais à sua concessão”
Portanto, não se trata de afirmação sem prova, mas de simples inversão do ônus da prova para a parte contrária, em função da presunção legal existente. E não poderia ser de outro modo, pois caso assim não fosse, muitas demandas se perderiam, na medida em que antes de decidir o tema posto, o juiz teria que avaliar se a parte tinha ou não condições de arcar com as despesas.(Não se esqueça que a parte que mentir nesse ponto será condenada ao pagamento do décuplo das custas).
Há ainda uma outra salvaguarda para impedir que a parte se aproveite ilegitimamente do benefício: é a prevista no “caput” do art. 5º da Lei, que assim dispÕe, “verbis”:
“Art. 5º. O juiz, se não tiver fundadas razões para indeferir o pedido, deverá julgá-lo de plano, motivando ou não o deferimento dentro do prazo de setenta e duas horas”


Se o Magistrado, examinando as provas já existentes nos autos, desde logo constata elementos capazes de permitir um juízo a respeito da capacidade financeira da parte, pode, então, fundamentadamente, indeferir o pedido. Todavia, lembre-se: trata-se de incapacidade financeira e não econômica, como as vezes se verifica servir de equivocado argumento para a negativa da concessão. A parte pode muito bem ter patrimônio e, logo, capacidade econômica, mas estar impossibilitada de pagar um mínimo de taxas. Aproveite-se para dizer que também não é impedimento para a concessão do benefício o fato da parte ter advogado próprio, pois isso nada prova de sua capacidade financeira, na medida em que seu patrono pode fixar contrato de honorários para receber ao final do feito ou vinculado ao sucesso da demanda.
Desse modo, reafirme-se que não precisa a parte fazer qualquer prova da insuficiência de recursos para arcar com as despesas processuais, pois a lei exige unicamente a declaração de pobreza específica para fins processuais. Ou seja, pela só declaração atestada na própria peça processual há indicação suficiente para se extrair da necessidade de seu deferimento, garantindo-se o acesso à justiça, garantia fundamental.

3. A confusão entre “assistência judiciária” e
“assistência jurídica”

Algumas decisões judiciais tem confundido “assistência judiciária” com “assistência jurídica” , o que tem levado ao indeferimento do pedido de assistência judiciária, sob o argumento de que ”... é princípio constitucional a necessidade de comprovação de insuficiência de recursos (art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal)” , extraindo daí a conclusão de que “cabe a parte, demonstrar, documentalmente (através de comprovante de rendimento ou documento equivalente), a hipossuficiência alegada (...)”, pois o “benefício é para quem realmente tem e demonstre a necessidade” .
Essa interpretação da norma constitucional, a nosso ver e com todo o respeito, é equivocada.
Com efeito, dispõe o referido inciso LXXIV, do art. 5º, da Constituição Federal:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.”
De uma simples leitura do texto feita com calma e utilizando-se apenas e tão-somente da primeira das regras de interpretação, a gramatical, percebe-se que o comando lingüístico estampado no texto magno não se dirige a isenções de pagamento de taxas, custas e despesas processuais. A letra da lei expressamente trata de outro assunto: o da “assistência jurídica integral e gratuita” aos que, dela necessitando, requererem.
Veja-se que a Constituição Federal utiliza o adjetivo “jurídico” e não o adjetivo “judiciário”: aí reside a confusão.
Não se perca de vista o fundamento de defesa democrática da cidadania trazido pela Lei 1.060, já nos idos de 1950. Só por isso, deve-se, desde logo, prestar-se mais atenção no que disciplina a atual Constituição Federa em relação ao assunto, especialmente levando-se em consideração o fato de que ela inaugurou no país um vasto campo de defesa da cidadania e de acesso à justiça.
Ora, o que o legislador constituinte disciplinou foi uma determinação para que o Estado garanta assistência jurídica integral e gratuita a quem necessitar. É para esse tipo de serviço essencial que o cidadão deve comprovar insuficiência de recursos ___ e não para requerer a mera isenção de taxas, custas e despesas processuais.
A doutrina define, sem sombra de dúvida, o que vem a ser a assistência jurídica integral e gratuita:
“(...) Diferentemente da assistência judiciária prevista na constituição anterior, a assistência jurídica tem conceito mais abrangente e abarca a consultoria e atividade jurídica extrajudicial em geral. Agora, portanto, o Estado promoverá a assistência aos necessitados no que pertine a aspectos legais, prestando informações sobre comportamentos a serem seguidos diante de problemas jurídicos, e, ainda, propondo ações e defendendo o necessitado nas ações em face dele propostas.”
Percebe-se, pois, que é razoável exigir do cidadão a comprovação da insuficiência de recursos, mas somente quando se trate de assistência jurídica integral e gratuita(e não de simples assistência judiciária, diga-se mais uma vez), e isto porque:
a) não se está falando apenas de ação judicial, mas de atos anteriores, de aconselhamento relativo ao comportamento que a pessoa deve ter diante do texto legal, de quais atitudes tomar, que caminhos, seguir, de assinar ou não um contrato, fazer uma queixa, firmar uma quitação, notificar alguém etc, podendo chegar, claro, na ação judicial já encampada e patrocinada totalmente pelo Estado;
b) se está tratando de entrega direta de serviço público, com prestação de serviço completo, o que exige do Estado aparelhamento específico ___ escritórios, advogados etc. ___ e custo adicional.
Realce-se um ponto importantíssimo: em momento algum se está a dizer que a parte pode fraudar o sistema processual fazendo afirmação falsa ___ como parecem querer dar a entender algumas decisões ___; longe disso. O que a Lei 1.060/50 faz é apenas, de um lado, garantir que a parte não tenha bloqueado o acesso ao Judiciário por uma exigência burocrática e, de outro, transferir para a parte contrária o ônus da demonstração da não veracidade da afirmação daquele que recebe o benefício da assistência judiciária gratuita.
Em outras palavras, a Lei 1.060/50 dá o direito subjetivo à pessoa de, mediante simples afirmação especial, pleitear os benefícios de assistência judiciária gratuita. Exercida essa prerrogativa, ao Juiz só cabe indeferi-la se tiver fundadas razões para tanto (art. 5º). Não tendo, nada pode fazer a não ser deferir o pleito. Daí, caberá à parte contrária ___ caso queira ___ impugnar a concessão, sendo dela o ônus da prova da inveracidade da afirmação. Se a parte contrária fizer tal prova, então, o beneficiário será condenado ao pagamento do décuplo das custas judiciais (§ 1º, do art. 4º).
Vê-se, portanto, que não só a Lei 1.060/50 foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, como está em plena sintonia com seus princípios, ao garantir acesso à justiça, de forma célere, imparcial, e fundada no devido processo legal.
Saliente-se, ademais, que não vinga a alegação, as vezes esposada em Juízo, de que a parte deve fornecer os documentos previstos no § 3º, do art. 4º, da Lei 1.060/50, e isso porque tal diploma está revogado. O referido § 3º, do art. 4º foi acrescentado pela Lei 6.654/79, que exigia a apresentação da carteira de trabalho e previdência social, quando do requerimento de assistência judiciária gratuita.
Tal norma dispunha o seguinte:
“§ 3º. A apresentação da carteira de trabalho e previdência social, devidamente legalizada, onde o juiz verificará a necessidade da parte, substituirá os atestados exigidos nos §§ 1º e 2º deste artigo”
Acontece que, pela nova redação dos parágrafos 1º e 2º, do artigo 4º, dada pela Lei 7.510/86, foram dispensados os atestados anteriormente exigidos nestes parágrafos, o que tornou implicitamente revogada o § 3º e sua exigência

4. Conclusão

Portanto, não há qualquer incompatibilidade entre a Lei 1060/50 e o inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal, posto que este regula a assistência jurídica integral e gratuita, aquela, nos artigos 1º ao 4º, apenas a assistência judiciária relativa à isenção de taxas, custas e despesas processuais. Nesta se exige comprovação da insuficiência de recursos; naquela basta a afirmação dessa insuficiência.


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